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O costumeiro e o Inconsciente

 Digestão e tempo numa análise 


           Estava fazendo alongamento e comecei a pensar sobre minha análise e seus processos, como de costume. Costume... sempre costumo pensar na minha análise nessa mesma hora em que estou mexendo meu corpo, mexendo onde dói, se dói minha coluna, se me sinto cansada, se me dói a cabeça, se fico enjoada enquanto rolo minha cabeça até o pé, se estou mais disposta, descansada ou sem dores alguma. Começo a pensar nessa repetição: costumo fazer minha aula de pilates depois da minha análise, onde às vezes pensando e mexendo em algum músculo me vem algumas lágrimas, enquanto mergulham em mim palavras, entonações e vozes que foram ditas durante aquele tempo que se passou a sessão, e durante o tempo de meu pilates que também passa, passo a limpo os ditos desse outro tempo que acabou de se passar. E começo a pensar o quão é importante aquele espaço, em que não falo nada, mas me movo enquanto penso e escuto minha própria análise. Vou atrás e lembro que já fazia isso, durante as 2h que eu levava indo para minha faculdade. E por ser costumeiro, quase sem pensar, pois não era um pensamento de: preciso pensar e captar o que falei, o que não falei, era simplesmente deixar ser caminhada por aquelas palavras e afetos, sem que eu notasse. 

O inconsciente mora também aí, nos detalhes, nos costumes, nas repetições que não percebo, era o movimento dele mesmo de montar e desmontar frases, histórias. O trabalho se dá aí, sem que eu possa perceber, sem que eu saiba conscientemente, mas saiba em outro lugar. E me dou conta da importância desses pequenos hiatos, dessa pequena pausa onde posso digerir, mastigar e tirar algum pedaço que possa ter ficado entre meus dentes. A importância de não sair fazendo alguma outra coisa com meus pensamentos, minha atenção na correria que esse mundo nos exige, e não esvaziando o que se passou naquela hora. Um respiro porque fazer análise nem sempre promove um bem-estar, às vezes ainda que sentindo um alívio enorme de ter falado, aquelas palavras que saíram da minha boca ganham ainda mais vida em meu corpo, esse que mexo e remexo depois de deitada no divã. 

O avesso da escrita: uma ética do indizível

 



A música cantada por Maria Bethânia “O que eu não conheço” (VERCILLO, J.; VELLOSO, J., 2021) traz um certo “dar-me conta do avesso que mora em mim”. O bordado é isso que se trança por meio de buracos, “tento situar o escrito - e ainda vou avançar nisso - como essa borda do Real, situá-lo sobre essa borda” (LACAN, 1973-1974/2018, P.194). Há uma escrita que inscreve o Real, na medida em que se situa e enlaça algo de um gozo a mais, que toca algo de indizível. É o que me interessa enquanto escritora e psicanalista marcada pelo nome Real (não pelo simples nome, mas por tomá-lo enquanto tal). Escrever, para mim, é tecer. É fazer sentidos e desfazê-los, comparado ao que aponta Lacan (1973-1974/2018, p.170) sobre o saber, é efeito de um inventar e construir, não existe anteriormente, o supondo: o inconsciente poderia ser totalmente distinto de uma suposição, porque o saber - se é verdade o que disse na vez passada - não está em absoluto forçado a supô-lo: é um saber em vias de construção” 

 O importante do bordado é o avesso, diz a música, pois é de fato onde as coisas acontecem. O inconsciente enquanto isso que só se tem notícias - quando escutado -, mas que é estruturado por toda uma trama, que às vezes se carrega sem saber, sem perceber. “O mais importante em mim é o que eu não conheço. O que de mim aparece” (VERCILLO, J.; VELLOSO, J., 2021), isso que também não-sou, me é. E não que se deva finalmente conhecer, não, mas que se trata de sustentar esse ponto impossível. Advertir-se e experimentar que o amor é sempre um reencontro com um desencontro, pois é onde me falta alguma palavra, onde me desconcerto e desconheço, que eu não pareço eu, que não sou o que pensei, é nesse ponto que abro espaço para refazer, para reescrever e para criar com algum outro, a matéria prima do amor. 

Lacan aponta uma dimensão ética da psicanálise em relação à arte, eu apontaria também para uma ética do indizível, onde toca o inexpressivo e o sustenta. Ele diz que Platão nos fez notar que é até preferível o poeta não saber o que faz, e que para os analistas “diante disso, na verdade, não resta senão abaixar a cabeça” (LACAN, 1973-1974/2018, p.192). Afirma que Freud sempre descartou a interpretação da arte, e de que é uma noção delirante o que chamam de psicanálise da arte, esta é descartável. Se há uma homologia entre psicanálise e arte, é a de que os analistas aprendam com ela e alcancem seus resultados para uma outra coisa, e de que a própria psicanálise se coloque como “esse terceiro que ainda não está classificado, essa alguma coisa que se apoia na ciência, por um lado e, por outro, toma a arte como modelo. E iria ainda um pouco mais longe: que não se pode fazê-lo senão na espera de ter que se dar ao final por vencido” (LACAN, 1973-1974/2018, P.192). Ali onde há um certo não sei do poeta, esse dar-se por vencido, é o que possibilita que a análise possa ser uma prática, “pode haver algo novo e que consiste em certa redistribuição de letras” (LACAN, 1973-1974/2018, P.190). 

“Então, se esse saber deve ser inventado para que haja saber, talvez seja para isso que possa servir o discurso psicanalítico” (LACAN, 1973-1974/2018, p.168), o amor é esse criar-se, inventar-se e ele aponta para um saber, ou melhor, uma verdade. “Descubro novos limites, eu perco o endereço”, o encontro com alguém é assim, por vezes bagunça e não sabemos por onde caminhar, pois um encontro que proporciona um certo perder o endereço, possibilita que eu faça novos caminhos. Esses caminhos que são possibilitados também na transferência, que nada mais é do que o amor, o modo que nos relacionamos é repetido na cena do DivãLacan no seminário 20 (1972 - 1973/2008) aponta que na clínica não se faz outra coisa senão falar de amor. No seminário 21, Lacan afirma: “a transferência é a descoberta: verdade do amor”, e que isto é uma revelação do inconsciente enquanto saber. O testemunho e a validação do inconsciente enquanto um saber é o que permite emergir a verdade do amor.  

O importante do bordado é o avesso, como diria o canto de Bethânia. O amor é feito trilhando esse caminho, o caminho da revelação de um certo gozo, daquilo que é expelido, Lacan (1973-1974/2018, p.81) aponta: ao Simbólico lhe dou o que se nos revela através de seu emprego na palavra, e especificamente na palavra do amor, que é suportar o que em efeito toda a análise nos faz sentir: suportar o gozo”. O amor é a linha que  tece e amarra, e por isso mesmo ele denúncia o que é que ele borda. O amor se dá finalmente ao tocar esse inexpressivo que aponta o gozo, ao resto que é o avesso da coisa bordada, é quase estranho, é quase feio e aversivo. É visceral. É o Real que não cessa de não se inscrever, e por isso mesmo se escreve parcialmente, por bordas, há sempre algo que sobra. Por isso, a escrita pode ser feita de sobras, a escrita é uma certa morte no que faz suportar e faz barragem desse gozo, mas ela também pode ir além, e ser litoral, catando os ossos (conchas) disso que morreu. Em escrever com o amor, e ao mesmo tempo subvertê-lo tocando a Coisa, o indizível, nem tudo o amor pode amarrar. Um gozo que é para além, tendendo ao infinito e ao para sempre nunca dito todo. Amarra-se um gozo na escrita, esse simbólico, e a partir disso mesmo que pode-se ir além, ao mais de gozar.

Esse amor que se apresenta na análise enquanto uma verdade, isso que se expele da transferência, Lacan coloca como uma coisa: 

“E nunca se soube bem fazê-la voltar a entrar, salvo sob a forma do mal-entendido, da coisa imprevista, da coisa com a qual não se sabe o que fazer, salvo dizer que era preciso reduzi-la, inclusive liquidá-la. (...) que da experiência analítica, a transferência é o que ela expulsa, o que ela não pode suportar senão padecendo, por sua causa, de fortes dores de estômago.  

Se o amor passa por esse estreito desfiladeiro de que é a causa, e com ele revela o caráter de sua verdadeira natureza (...) Com o amor pagamos, oferecemos um óbolo, tentamos por todos os meios permitir que se afaste, que se dê por satisfeito” (LACAN, 1973-1974/2018, P.179) 

 Esse estreito desfiladeiro se faz no bordado, no rendado, em uma travessia na qual tentei trançar a música de Bethânia e Lacan. Aqui também, por meio de minha escrita de poeta e psicanalista tento fazer o amor. Não sei o que digo ao dizer, mal compreendo, é quase nublado para mim o que escrevo, e como apontado anteriormente, é melhor mesmo que eu não saiba, justamente para apanhar algo disso que é minha própria invenção. Nem mesmo sei se me equivoco, me confundo em todos esses conceitos difíceis – e prefiro mesmo quando tropeço-, mas realizo algo de uma renda minha, com meus afetos, por agora. E sempre terei o que cair dessa escrita, para reescrevê-la, os restos dos meus panos não tecidos. E ao final da música, “O rendado do tempo, como me foi passado o ensinamento” (VERCILLO, J.; VELLOSO, J., 2021), tudo isso não é sem o tempo, e ao mesmo tempo tão atemporal. Os mesmos pontos circulam a todo instante, um ensinamento passado (transmitido e transferido) ainda se faz presente. A repetição (que se apresenta também na transferência) não é um mero “murro em ponta de faca”, é o segredo do ponto” (VERCILLO, J.; VELLOSO, J., 2021) que vira enredo. 

 

 

 

Referências bibliográficas:  

LACAN, J. (19731974). Os não-tolos erram / Os nomes do pai: seminário entre 1973-1974. Porto Alegre, RS: Editora Fi, 2018. 

_________. (1972-1973). O semináriolivro 20: mais, ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2008. 

VERCILLO, J.; VELLOSO, J. O Que Eu Não Conheço. In: Bethânia, Maria. Disponível em: https://www.letras.mus.br/maria-bethania/1563907/ . Acesso em: 14 de setembro 2021. 

A Sereia que não estava lá


 

O que é o que é? 
Tem calda, mas não tem pé 
É peixe, mas não é 
Vive no reino do mar
Mas ela morre de curiosidade de sair de lá 
Ops, já disse que é ela.
Ela que é bela 
Canta na pedra 
Para enfeitiçar.
Penteia seus longos cabelos 
Para me conquistar 
Me pisca um olho 
Para me apaixonar 
Um dia prometi lhe dar tudo que sonhava 
Levei ouro 
Levei prata 
Levei espelho 
Levei brincos e colares 
Levei tudo que possa desejar 
Decepção. 
Ficava triste, mas logo voltava a cantar
Sentia que queria me enganar
Um dia, levei uma caixinha de música 
Um casal dançava dentro dela 
Ela olhou, olhou 
Não parava de olhar 
Uma lágrima escorreu 
E saltou para o mar.
Foi quando entendi que ela só queria alguém para amar 
Pois então, eu ia todo dia voltar
Para seu amor reconquistar,
E todo dia eu encontrava 
A sereia que não estava mais lá. 
- Luisa Monte Real 

A Arte de Ser Você


E eu peguei uma cesta com barro
Comecei a montar o que viesse na cabeça.
E o que é que tem nela?
Cabelo
Terra
Semente
E cor
Cabelo pra enfeitar
Pó pra lembrar
Terra pra plantar
Semente pra florescer
E cor para pintar.
Numa brincadeira de mão a mão
Tinha um ritmo que de pião
Uma grande confusão
Se fazia para frente para trás,
roda a roda,
Chora, chora
gira e gira e girassol.
Redemoinho no cabelo
Os olhos castanhos
E os lábios vermelhos
Um beijo no nariz
É o que condiz
Com a paixão de um aprendiz.
As orelhas bem abertas
Ouve-se no barro o som das cores amarelas
Mas gostava mesmo na aquarela 
O rosa pink
Piquenique com as estrelas e o luar
Aonde amar é
Cair na onda do mar
Na música tocar
O barro criar
Na arte borrar
O texto postar
No teu colo deitar
Em um Sol nascer
A luta de vencer
O esforço de ser e crescer
Em você.

-Luísa Monte Real